Enquanto muitos pecuaristas brasileiros lutam para fazer valer cada centavo da carne dos animais que vendem para a indústria, para um seleto grupo essa queda de braço com a indústria é coisa do passado. Organizados em cooperativas e associações, esses produtores investiram nos últimos anos na verticalização da atividade e, hoje, abatem, processam e distribuem a própria carne.
Cada grupo tem a sua forma de assumir o abate do próprio gado. Como precisam da estrutura do frigorífico, apenas pagam para utilizá-la. O abate é feito na unidade, mas não está ligado a uma operação de compra e venda de animais. O objetivo é reduzir a dependência da indústria ao mesmo tempo em que não precisam arcar com custos nem riscos de se manter uma planta de processamento de carne.
“O frigorífico é um pepino gravíssimo para o produtor rural. Nós também fomos mexer com isso porque, quando entramos nesse negócio, pagava-se rendimento de carcaça de animal macho de no máximo 51% aqui na região”, conta Luiz Carlos Braga, presidente da Maria Macia, em Campo Mourão (PR).
Uma das primeiras cooperativas de pecuaristas a assumir o próprio abate no país, ainda em 2003, o grupo aumentou em dez vezes o volume médio em seis anos, reunindo produtores com índices de produtividade de mais de 40 arrobas por hectare ao ano. Hoje, paga até 56% de rendimento de carcaça a seus cooperados. O caminho, contudo, não foi fácil.
“Enfrentamos um mercado completamente desconhecido e, de certa maneira, era uma picada no mato. Nós sabíamos onde chegar, mas não tínhamos uma bússola ou um caminho delineado”, lembra Braga.
Além da tecnificação da produção, os desafios para assumir os demais elos da cadeia de produção da carne também envolveram desenvolver estrutura própria de distribuição e enfrentar um mercado dominado por gigantes multinacionais. “Não é uma coisa assim tão fácil porque existe todo um trabalho de convencimento do produtor, de mobilizar o produtor e fazer com que ele entenda esse processo”, ressalta Victor Ferreira, analista de agronegócio da unidade de competitividade do Sebrae.
Ele tem atuado para auxiliar grupos de pecuaristas interessados na verticalização e explica que o processo visa a atender um mercado específico, de carne de alta qualidade e maior valor agregado. “Precisa de uma organização e um trabalho de participação deles muito forte. Desde o incremento de tecnologia, acesso a mercados, gestão financeira, tudo isso tem que ser levado em conta”, lembra Ferreira.
Em um mercado cada vez mais exigente, não só em relação à qualidade da carne, mas também quanto ao manejo, bem estar animal e sustentabilidade, a verticalização é apontada pela Embrapa como uma das “megatendências” para a pecuária nos próximos 20 anos. Segundo, Guilherme Cunha Malafaia, que estudou o assunto, a estratégia também é uma saída para reduzir a ociosidade dos frigoríficos instalados no país atualmente em níveis historicamente altos, segundo ele.
“O que a gente vê é justamente esse movimento: de outros elos entrarem no segmento de industrialização buscando capturar valor, principalmente entre os produtores que querem trabalhar no segmento premium”, afirma o pesquisador.
Foi em busca desse mercado de qualidade que um grupo de produtores de Campos de Cima da Serra, no Rio Grande do Sul, fundou a Aproccima (Associação dos Produtores Rurais dos Campos de Cima da Serra) em 2006 – inicialmente como um clube de troca de experiências e de compra de insumos, mas que logo se converteu em uma marca própria de carne.
“É o produtor dentro da associação que paga todo o sistema. Pagamos o caminhão que transporta o boi, o frigorífico que abate e o caminhão que vai distribuir a carne para o varejo. Ou seja, temos o custo dessa operação toda e pactuamos o preço com o varejo”, explica Carlos Simm, presidente da Aproccima.
Apesar das dificuldades, o controle do demais elos da cadeia tem permitido aos associados obterem remuneração até 18% acima da média do mercado. “Realmente é difícil. Não acredito que seja uma solução pronta que pode ser usada de maneira geral. É uma solução pontual, em pequena escala”, avalia o pecuarista ao destacar que a estratégia da associação tem sido atender o mercado local.
“O que nós queremos é que nas demais regiões se criem outras associações que atendam aquelas regiões. São ações regionais onde as pessoas se conhecem, onde a qualidade vem antes da quantidade e onde há poder aquisitivo para esse consumo”, explica Simm.
Ele destaca as desigualdades de remuneração na cadeia da carne. “Na realidade, todo mundo tem que ganhar dinheiro. O produtor tem que ganhar dinheiro, o frigorifico tem que ganhar dinheiro e o varejo tem que ganhar também. Mas a distribuição tem que ser a mais homogênea e justa possível”, conclui o pecuarista.
No nordeste do país, as iniciativas da Maria Macia e da Aproccima inspiraram a criação da cooperativa Cooperboi (Cooperativa do Agronegócio do Boi) há um ano, responsável pela marca Boi de Engenho, em Maceió (AL). “A gente sempre achou que, por ter um gado bom e com uma genética bem diferenciada em relação ao país, e como nossos criadores são bem tecnificados, a gente achou que poderia traçar esse caminho”, conta o cooperado Amarílio Monteiro, da fazenda Camaratuba.
Com quatro pontos de venda na capital alagoana, o grupo de 21 produtores se prepara para inaugurar uma unidade própria de beneficiamento este ano, dando um passo além na verticalização. O abate continuará sendo feito em um frigorífico terceiro, mas, de posse das carcaças, os produtores vão preparar os cortes para vender ao mercado. “Os supermercados melhores não querem mais comprar carcaças, mas os cortes prontos. Então vamos trabalhar para entregar esse produto”, revela Monteiro.
Em plena expansão, a cooperativa espera conseguir atender outras capitais do nordeste, como Aracaju em Sergipe e Recife, em Pernambuco. “A gente teve uma fase de difícil implementação que é a comercialização dos pontos e, agora que conseguimos uma razoável estabilidade no mercado, vamos partir para esse novo grande desafio, que é montar a beneficiadora e realmente ir ao mercado vendendo os cortes” lembra.
No Paraná, o veterano Luiz Carlos Braga não se arrepende do caminho traçado há quase duas décadas e que ajudou na definição da estratégia do grupo alagoano. “Eu diria que se conhecesse as dificuldades que temos hoje no que diz respeito a frigorífico eu começaria de novo apesar de tudo. Tanto que, mesmo sabendo de todas as dificuldades, a gente continua fazendo”, observa o presidente da Maria Macia.
Fonte: Revista Globo Rural