Atualmente são quatro, mas especialistas apontam que tendência é mais propriedades rurais deixarem de usar a prática, considerada contrária ao bem-estar animal
Um artigo no principal jornal inglês, The Guardian, em fevereiro de 2010, acendeu uma luz de alerta em relação à imagem da carne brasileira no exterior. O texto dizia que pelo menos um quarto da carne à venda no Reino Unido vinha de fazendas que não precisavam atender aos padrões nacionais de bem-estar animal. No caso da carne bovina, a principal preocupação dos ingleses era o produto importado do Brasil, “onde o gado pode ser castrado com até seis meses de idade, mochado e marcado a quente, tudo sem anestésico”. Essas práticas já eram proibidas no Reino Unido naquela época.
Passados 11 anos, a técnica da marcação a ferro quente ou ferrete foi eliminada em pelo menos quatro fazendas brasileiras, número que deve chegar a 20 nos próximos meses e tende a crescer, segundo o professor do Departamento de Zootecnia da Faculdade de Ciências Agrárias da Unesp de Jaboticabal (SP) Mateus Paranhos.
O especialista diz que, normalmente, o gado tem pelo menos seis marcas, entre o número de identificação de até cinco dígitos, mais a marca da fazenda de um ou dois dígitos. Se for fêmea, tem ainda a da brucelose e se for gado P.O (Puro de Origem) leva também o número de registro na associação. Há casos de animais que recebem mais de 12 queimaduras ao longo da vida.
Paranhos conta que existe a técnica de marcação a frio, com nitrogênio líquido, mas ela não é viável para todas as raças, queima também e, embora pesquisas apontem que o sofrimento é menor, aumenta o risco de queimaduras e lesões nos funcionários que fazem a aplicação.
No final do ano passado, o grupo Etco, formado por Paranhos e mais especialistas da Unesp em bem-estar animal, se juntou à fazenda Orvalho das Flores, da pioneira Carmen Perez, para lançar o projeto Redução da Marca a Fogo, com patrocínio das empresas do agro JBS, Allflex e MSD.
A mais recente adesão de peso ao projeto veio da Agropecuária Jacarezinho (AJ), que pertence ao empresári, Marcos Molina, dono da Marfrig. Formada por sete fazendas em quatro Estados (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia e São Paulo), com cerca de 100 mil animais a pasto, a Jacarezinho abandonou neste ano a marcação a fogo de precocidade no cupim de suas cerca de 20 mil novilhas. Também deixou de registrar as iniciais do pai nas matrizes. Cada animal na AJ tem pelo menos seis marcas pelo corpo, com 13 números e letras. Neste ano, estão sendo retiradas quatro, o equivalente a 8 queimaduras.
“Em dois anos, pretendemos retirar todas as marcas. Só vai restar a da brucelose”, diz o zootecnista Breno Máximo, 29 anos, gerente técnico de sanidade e bem-estar de reprodução da AJ, se referindo à marca na face das fêmeas que indica que elas foram vacinadas entre 3 e 8 meses de idade contra a brucelose. A marca é obrigatória e regulamentada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Segundo ele, o momento agora é de dar um salto tecnológico e atender ao mercado consumidor, que se preocupa cada vez mais com o bem-estar animal. “Para que usar marcação a fogo? Isso é uma questão cultural que tem que ser eliminada porque temos outras formas mais seguras de identificar os animais como o botton eletrônico e o brinco.”
Máximo acrescenta que, na fazenda São Marcelo, em Tangará da Serra e Juruena (MT), de 40 mil cabeças, comprada pelo grupo no ano passado para um projeto de expansão que visa atender ao exigente consumidor americano, os animais já não têm nenhuma marca no rosto, a não ser a da brucelose.
O gerente diz que o mais difícil nesse processo de mudança tem sido convencer a equipe que a identificação sem ferro quente é mais rápida, mais segura e saudável também para quem cuida do gado e que não haverá retorno. “Os vaqueiros têm medo da mudança. Dizem que o pai e o avô sempre fizeram assim, que os animais vão fugir ou vão perder o brinco.” Segundo ele, a AJ vem implantando vários cursos de capacitação para acelerar esse processo de mudança cultural dos funcionários.
Outras ações para melhorar o bem-estar dos animais nas fazendas do grupo de Molina são a introdução de postes para o gado se coçar, visando abaixar o nível de cortisol, o plantio de mais árvores no pasto e a instalação de sombrite nos confinamentos para aumentar a área de sombra.
Pioneira
Na época da publicação da reportagem do The Guardian, a jovem paulistana Carmen Perez já estudava formas de eliminar a marcação a fogo em seus animais na fazenda Orvalho das Flores, em Barra do Garças, no Vale do Araguaia, em Mato Grosso. A propriedade foi uma herança do avô Manuel Martins.
Sem nenhuma formação universitária, ela deixou a capital paulista em 2002, aos 22 anos, para assumir a fazenda que havia sido dividida entre sua mãe e seus dois tios. “Eu não tinha nenhuma experiência em pecuária, mas passava as férias na fazenda, gostava de cavalos e pedi uma chance para gerenciar a parte da minha mãe. Tive que aprender tudo no campo. Acordava às cinco, colocava um jeans e camisa de manga comprida e saía a cavalo com os vaqueiros. Incomodava-me demais a marcação a fogo e a cultura de brutalidade com os animais. Em pouco tempo, não queria mais frequentar o curral.”
Ela lembra que, na divisão dos animais entre sua mãe e os tios, as 14 mil cabeças de gado passaram pelo curral para receber mais três marcas. “Foram 60 dias de trabalho estressante, das 7h às 19h, perto daquele fogareiro barulhento, com muito calor, vendo e ouvindo o sofrimento dos animais e escutando dos vaqueiros que isso era frescura de menina da cidade.”
Incomodada com os manejos, Carmen passou a visitar muitas fazendas no país para ver novas práticas. Nessas pesquisas, conheceu o já falecido criador mineiro Helvécio Argeu Alves, que tinha fazenda em Goiás e tratava seu gado com carinho, chegando a fazer a desmama lado a lado para beneficiar vaca e filhote.
A pecuarista mergulhou em pesquisas internacionais sobre os efeitos da marcação a fogo e disse que chegou à conclusão de que o processo é extremamente doloroso para os animais. Segundo ela, a queimadura é de segundo ou terceiro grau, a frequência cardíaca do animal se acelera, subindo os níveis de cortisol, o local que recebe a marca permanece quente por 168 horas até a formação do novo colágeno e o processo inflamatório leva oito semanas para cicatrizar. “Sem falar na memória ruim que fica para o animal da passagem no curral.”
“Vi que havia uma forma diferente de trabalhar e procurei, então, em 2007, o professor Paranhos para entender o comportamento bovino. Eu tinha medo do nelore, mas queria mudar a forma de manejo na minha fazenda”, diz Carmen. Paranhos foi convidado a passar três dias na fazenda educando os funcionários, mas a mudança não aconteceu de imediato. “Fiquei frustrada porque eles diziam que era mais fácil trabalhar do outro jeito. Percebi que eu teria que ser mais presente, firme e mudar a gestão.”
A retirada das marcas a fogo, com exceção da obrigatória da brucelose, foi completada em 2016 na Orvalho das Flores. Os 2.800 animais de cria têm hoje brincos eletrônicos e tatuagem de identificação. Ela diz que a perda dos brincos é muito baixa na sua fazenda, em torno de 2%, e que o preço desses equipamentos vem caindo progressivamente.
A substituição da marcação a fogo por brincos ou bottons já é realidade em alguns países, como o Reino Unido, e avança em outros, como o Canadá. No Brasil, algumas entidades como a Associação Brasileira do Gado Girolando (ABCG) trocaram por fotografia a marcação a ferro quente dos quatro números de registro do animal, que era feita na perna direita.
“Os girolandos têm várias particularidades na pelagem, o que permite a identificação por foto em 99% dos casos”, diz Leandro de Carvalho Paiva, superintendente técnico da associação, que tem 2 milhões de animais registrados. A mudança ocorreu em 2012 e os animais passaram a receber também um botton com o número do registro.
Paiva conta que foi fácil convencer os criadores a aderirem à mudança pela rapidez e custo da nova tecnologia. Antes, a inspeção demandava três ou quatro funcionários para marcar 60 animais por dia. Hoje, a capacidade da inspeção subiu para até 150 bovinos por dia e precisa de apenas um pessoa.
O que ainda não mudou é a obrigatoriedade da marcação a fogo do G baldinho na face do girolando. “Estamos buscando técnicas para nos próximos anos fazer essa marcação sem causar lesões. Achamos que o brinco não é permanente, pode ser retirado e não é reaproveitável. Uma das ideias é trabalhar com chip eletrônico.”
A Globo Rural tentou ouvir também a Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), que tem mais de 15 milhões de animais avaliados, e mantém a marcação a fogo do registro na perna direita, mas a assessoria alegou que não tinha nenhum represnetante para falar sobre o assunto.
Adaptação
Segundo Carmen Perez, os funcionários da Orvalho das Flores hoje estão totalmente adaptados às práticas de bem-estar animal. “O meu capataz, Chico, por exemplo, era um vaqueiro agressivo na época em que cheguei à fazenda. Ele passou por toda a transformação da propriedade e hoje faz até massagem em bezerro.”
Chico, apelido de Luiz Ribeiro de Amorim, 51 anos, sempre mexeu com gado e trabalha na fazenda do Vale do Araguaia há 29 anos, bem antes da chegada de Carmen. “Antigamente, tinha muita marca, muita letra e número. O fim da marcação a fogo, apesar de nossa resistência no início, foi muito bom porque tirou o estresse do gado e a gente não fica mais tão cansado. Hoje, a gente não judia do bicho, eles são muito mansos e nos contam pelo olhar o que precisam. E é muito bom ver os bezerrinhos crescendo saudáveis e confiantes”, diz.
Segundo ele, todo mundo se conhece na região e quando acontece de algum animal fugir para o vizinho, logo é devolvido. Há casos, conta, de “pessoas mal intencionadas que tiram os brincos dos animais”, mas o sumiço é logo identificado e a equipe sai à procura. O capataz conta ainda que fazendas vizinhas têm copiado os manejos da Orvalho, o que não impede quem é de fora de fazer piada com os vaqueiros porque os bezerros usam um colar colorido de identificação nos primeiros meses.
O professor Paranhos diz que, infelizmente, muitos pecuaristas ainda são resistentes à mudança, não querem investir e esperam ter alguma vantagem nos frigoríficos para adotar os brincos. Ele ressalta que os criadores não percebem que já perdem dinheiro quando áreas do corpo de alto valor tem muitas marcas.
“A tecnologia dos brincos garante menos dor para o animal, menos riscos para os funcionários, mais segurança nas informações que são visualizadas no computador ao se passar o bastão no gado e mais rapidez no manejo. É uma tecnologia que avança ainda a passos lentos na pecuária brasileira, mas que veio para ficar”, diz.
Globo Rural procurou a Associação Brasileira dos Frigoríficos (Abrafrigo), mas a entidade disse que não interfere nesse processo, embora os frigoríficos sejam os responsáveis por repassar o couro dos animais que abatem aos curtumes. Já o presidente-executivo do Centro das Indústrias de Curtume do Brasil (CICB), José Fernando Bello, confirmou que as marcas a fogo no couro bovino impactam a qualidade da pele e o valor que o couro terá.
“Um couro com muitas marcas a fogo pode ter sua qualidade final depreciada, passando de uma classificação de primeira para segunda ou terceira.” Segundo Bello, embora haja uma lei estabelecendo os locais onde a marcação a fogo pode ser feita, muitas peles chegam aos curtumes com marcas em locais indevidos, prejudicando ainda mais a qualidade do couro.
Questionado sobre a redução de marcas a fogo, o executivo do CICB disse que a rastreabilidade é um tema que tem ganhado relevância em todo o mundo, com uma oferta crescente de tecnologias que possibilitam a identificação, o monitoramento e o acompanhamento de informações dos animais. Segundo ele, os brincos eletrônicos são um exemplo bem claro, trazendo uma inteligência de dados que pode apoiar a produtividade, a eficiência e o aprimoramento contínuo.
“Os clientes do couro brasileiro, não só no Brasil, mas em todo o mundo, têm demandado cada vez mais garantias sobre as melhores práticas de manejo e abate de animais. Ou seja: a questão do bem-estar animal ultrapassa o efeito imediato sobre a qualidade do couro; ela tem o potencial de aproximar consumidores da cadeia como um todo.”
Para Carla Lettieri, diretora-executiva da Animal Equality Brasil, organização internacional de defesa dos animais de produção, é preciso romper com o paradigma de que os animais são propriedades ou coisas. “As marcações são extremamente dolorosas e podem demorar semanas para cicatrizar. É um absurdo usar a pele dos animais como um livro de registro quando sabemos que já existem alternativas eficazes e menos cruéis para fazer esse controle.”
Brucelose
Além da campanha de redução das marcas, Carmen Perez, casada com um produtor de cana-de-açúcar e mãe de duas meninas, e o professor Paranhos iniciaram uma cruzada para acabar com a obrigatoriedade da marca a fogo da brucelose, já que uma pesquisa em 2016 mostrou que a aplicação de anestesia na face para essa marcação é inviável. “Dá para substituir por uma tatuagem como já fizeram outros países. Basta ter a aprovação do ministério”, disse Carmen.
Consultado, o Ministério da Agricultura respondeu apenas que a marca a fogo, apesar de envolver questões de bem-estar animal, não envolve a pasta, que não tem conhecimento sobre a campanha. Questionado novamente sobre a marca obrigatória da brucelose, que é de sua própria regulamentação, não houve resposta até a conclusão deste reportagem.
Fonte: Globo Rural