Título não define critérios e metodologias para o pagamento por serviços ambientais e abre espaço para contratos sem valor
Assinado durante a cerimônia de comemoração dos 1.000 dias de mandato presidencial de Jair Bolsonaro, o decreto Nº 10.828, que regulamenta a emissão de Cédulas do Produto Rural relacionadas a serviços ambientais, pode não atingir os R$ 30 bilhões em recursos para conservação de florestas no Brasil como prevê a equipe econômica do governo.
Sem definir parâmetros mínimos sobre a metodologia e os critérios para estipular esses pagamentos, o título abre espaço para contratos sem adicionalidade, critério usado para apontar se a conservação de uma área de fato contribui para determinado serviço ambiental, e deixa em aberto regras fundamentais em relação ao funcionamento desse mercado.
“É uma regulamentação de quatro artigos e quatro artigos que não regulamentam, só falam da temática que está inserida a CPR Verde”, avalia Fabio Ishisaki, advogado e analista de políticas públicas do projeto Política por Inteiro, que acompanha mudanças legislativas propostas pelo executivo federal. Entre os exemplos da falha na regulamentação, ele destaca a falta de métricas para quantificar a redução de gases do efeito estufa ou o estabelecimento de regras claras de qual será o papel das certificadoras que triangularão a negociação desses títulos.
“Não tendo essa delimitação tão clara em norma, ela fica muito à mercê ou de um mercado que vai sobreviver por si só, mas às vezes não vai ter tanta segurança assim de que forma ele vai rodar ou que também vai dar abertura para pessoas de má fé”, afirma Ishisaki ao destacar a falta de “conceitos básicos de mercado” no decreto publicado pelo governo. “Isso não quer dizer que a CPR Verde não seja um instrumento interessante. A questão é quanto que essa figura, quanto que esse mercado, mesmo que seja voluntário, quanto vai girar com tantas incertezas e incertezas básicas, de como é, quem vai certificar e, se vai certificar, como vai fazer isso”, completa o advogado.
Segundo um executivo de uma securitizadora que atua hoje no mercado voluntário de crédito de carbono, a criação da CPR Verde sem o estabelecimento de regras mínimas de adicionalidade ou precificação dos serviços ambientais pode criar uma “concorrência desleal”. “É quase como criar um mercado futuro de milho, mas sem ter definido qual milho eu vou considerar ou ter um mercado maduro de milho embasando esse título”, questiona o executivo. Assim como Ishisaki, ele classifica como positiva a criação da CPR Verde, mas destaca que o título está longe de sanar o principal problema do mercado de pegamento por serviços ambientais no país, que é aumentar a demanda por esses títulos.
“A gente já tem um ecossistema voluntário que serve ao propósito que está se colocando, mas a gente se beneficiaria mais de um amadurecimento ainda maior desse sistema de acompanhamento dos projetos. A gente poderia ter uma regulamentação desse mercado dentro da própria iniciativa privada, mas com mais clareza de quais são os serviços ambientais elegíveis”, afirma o executivo ao classificar como “vago” o decreto. “Do jeito que está, pode haver uma simplificação comparando uma CPR Verde, falando que aquilo pode compensar a emissão ou ser equivalente a credito de carbono, e ter sido gerado de uma forma muito diferente do crédito de carbono em si”, completa.
Para a especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, “o regulamento não regulamentou”. “Os instrumentos econômicos têm que ser bem parametrizados, têm que estar muito claro como que vai ser a aplicação e o controle e isso não está claro”. Ela questiona, por exemplo, a falta de especificações em relação à validação o Cadastro Ambiental Rural ou áreas públicas não tituladas. “Isso é muito ruim porque você pode perder a referência e macular a própria ferramenta se tiver desvio e o pagamento por serviços ambientais é uma ferramenta importante”, completa Suely ao classificar o decreto como “vazio”.
Com uma série de pendências regulatórias, os especialistas questionam a previsão do governo de que o instrumento injete R$ 30 bilhões em recursos para a preservação florestal. “O potencial que nós temos de manter florestas em pé no Brasil é bilionário. O papel que as florestas brasileiras exercem na ajuda na contribuição pra mitigação do clima é um papel bilionário. Mas para serrem remunerados eles precisam ter credibilidade e para ter credibilidade a gente precisa fazer o dever de casa, cujo principal é reduzir o desmatamento e em especial na Amazônia”, lembra o diretor executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), André Guimarães.
Nesse sentido, Ishisaki e Suely destacam outros programas já lançados pelo governo federal, como o Programa Floresta Mais ou o Adote um Parque. “São programas que a gente não sabe se foram viabilizados ou não e parecem ter praticamente a mesma sistemática dessa”, explica o advogado. Na avaliação da especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, o decreto “parece mais um rótulo para apresentar na Conferência do Clima em Glasgow”, mas sem operacionalidade imediata. “No mínimo um CAR validado eu acho que deveria existir, senão não tem cabimento”, conclui Suely.
Fonte: Globo Rural